Bienal da Bahia: um resgate necessário

Por Alejandra Hernández Muñoz

A Bienal da Bahia não é um evento novo como alguns pensam, menos ainda, uma invenção de um grupo contemporâneo. É, sim, o resgate necessário de um momento de encontro e discussão artística que foi abruptamente interrompido em 1968 quando se realizava a sua segunda edição. Portanto é pertinente recapitular o percurso que levou ao seu surgimento para embasar a discussão da eventual reproposição da Bienal pelo atual  Decreto nº 11.899 de 17 de dezembro de 2009.
A Bienal surgiu em 1966 como afirmação do cenário artístico local em diálogo com a produção nacional. Sua proposta partia do reconhecimento de Salvador como centro de discussão de arte diante da trajetória de artistas locais e de um contexto cultural que se delineava desde meados dos anos 30.
As primeiras mostras coletivas de artes plásticas visando discutir a produção moderna se consolidaram entre 1937 e 1948 com os Salões da ALA (Ala de Letras e Artes), realizados em Salvador por artistas acadêmicos liderados pelo crítico Carlos Chiacchio. Ainda em 1944, foi realizada a primeira Exposição de Arte Moderna, na Biblioteca Pública (no antigo prédio da Praça Municipal), sob coordenação de Manuel Martins (que veio à Bahia convidado por Jorge Amado para ilustrar o livro Bahia de Todos os Santos). Dois meses mais tarde, a modo de “revanche”, foi realizada a Exposição Ultramoderna, no Hotel Palace, sob liderança de Wilson Lins (dono do O Imparcial). E poucos anos mais tarde, enquanto no Brasil nasciam instituições como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e a Sociedade de Arte Moderna de Recife (SAM, hoje Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães ou MAMAM), em 1948, era realizada a Exposição de Arte Contemporânea, na Biblioteca Pública de Salvador, organizada por Marques Rabelo e idealizada por Anísio Teixeira, então Secretário da Educação e Saúde do governador Otávio Mangabeira.
Nesse contexto de sucessivas mostras coletivas com foco na discussão da modernidade, em 1949, nasceu o 1º Salão Baiano de Belas Artes, no Hotel da Bahia, que teve outras quatro edições em 1950, 1951, 1954 e 1955 no Belvedere da Sé. Naquele mesmo ano, apareceu a revista Cadernos da Bahia, veículo de divulgação e defesa do modernismo e foi instalado o Bar Anjo Azul decorado com murais de Carlos Bastos que seriam os primeiros da arte muralista da Bahia. Em 1950, foi fundada a Galeria Oxumaré (primeira iniciativa de comercialização de artes plásticas em Salvador), no Passeio Público, onde funcionou até 1961 e que acolheu, naquele primeiro ano, o 2º Salão Baiano de Belas Artes marcando a primeira participação de mulheres artistas. E essas foram algumas das iniciativas mais importantes ligadas estritamente ao campo das artes plásticas.
Desde o último Salão Baiano de 1955, a Bahia vivenciou um desenvolvimento sem precedentes na área cultural que culminou com a fundação da Universidade da Bahia e o Museu de Arte Moderna da Bahia em 1959. Ambas instituições, junto a iniciativas como o Clube de Cinema da Bahia, galerias e instituições culturais como o ICBA, não só reforçaram um circuito local de artes visuais até 1964, como foram focos de uma elipse que englobou e catapultou a produção artística da Bahia para o contexto nacional e internacional. Porém, o golpe militar de 31 de março de 1964 impôs limites e restrições à liberdade de expressão, iniciando a desarticulação gradativa desse cenário crítico, intelectual e artístico que tinha se formado na Bahia até então.
Nesse contexto, em 1966 é proposta a I Bienal Nacional de Artes Plásticas, que focalizou a segunda geração de artistas modernos. Centrando a atenção nas propostas vinculadas ao abstracionismo, a I Bienal privilegiou manifestações que se afastavam do regional, da referência anedótica da cultura local e do contextual. Como evento, a Bienal suscitou polêmicas e debates, mobilizou o circuito baiano e agitou a cena cultural local. Em que pese um certo afastamento dos artistas do público e um crescente hermetismo da produção artística como saldo da primeira edição, dois anos mais tarde a Bienal voltou a ser proposta e intempestivamente extinta pelo autoritarismo vigente.
Tudo indica que a II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, realizada em 1968, foi interrompida mais pelas desavenças internas e o conflito de interesses do circuito local do que propriamente por motivos político-ideológicos. De um lado, havia um clima quase de boicote ou, pelo menos, de limitação do apoio nacional a qualquer evento no Nordeste que viesse comprometer a hegemonia da Bienal paulista realizada desde 1951. Então, a criação da Pré-Bienal de São Paulo foi uma estratégia de diminuir a relevância da Bienal baiana. Portanto, o abrupto fechamento da II Bienal pelas forças militares se não atendeu explicitamente a esse desejo de fora, esteve perto. Mas, por outro lado, a interrupção da II Bienal é um fato que viria a calhar encobrindo um fechamento conceitual e ideológico que emanava desde dentro da estrutura artística baiana. A discussão da Bienal ter como foco central a produção da Bahia tinha levado ao rompimento público de vários artistas locais consagrados, entendendo que a Bienal, numa lógica de “reserva de mercado”, deveria ser antes uma mostra da produção baiana, do que uma discussão de rumos estéticos “externos”. Sem dúvida, seria essa lógica, não apenas provinciana como paradoxal com qualquer noção de Arte, que determinaria uma discussão infindável perpassada pelo comodismo intelectual, a legitimação da mesmice e o estancamento de qualquer possibilidade de inserção dos artistas baianos em circuitos além dos limites estaduais. Todo esse clima de desencontro de opiniões e interesses no cenário político de repressão de 1968 somado aos sérios problemas administrativos da organização do evento, levou ao esvaziamento da II Bienal e, consequentemente, ao enfraquecimento do movimento artístico local.
Com a extinção da Bienal da Bahia se truncou a possibilidade de problematizar, legitimar e afirmar não só a produção local além do horizonte do anedótico, folclorizado e/ou regional, como de fortalecer laços de uma produção do Norte-Nordeste, de fomentar intercâmbios dentro de um largo contexto cultural que nunca superou um entendimento fragmentário e circunstancial atrelado a ocorrências pontuais. A “cereja do bolo” desse processo de desmontagem artístico-cultural aconteceu na sexta-feira 13 de dezembro de 1968, com a promulgação do o AI-5.
Após mais de uma década de silêncio repressivo, com a retomada da democracia e num contexto artístico-cultural diferente, em 1988 é proposto o Salão Baiano de Artes Plásticas, criado pela Secretaria da Cultura da Bahia, no MAM-BA sob coordenação de Zivé Giudice. O Salão Baiano teve mais uma edição em 1989 e, após um impasse, em 1994 foi retomado à luz de outras iniciativas que foram reestruturando o circuito das artes visuais.
Em 1991, a Centro Cultural Danemann de São Fêlix realizou a 1a Bienal do Recôncavo, evento bianual atualmente com dez edições ininterruptas e que se consolidou como evento regional de afirmação da produção do Nordeste. No ano seguinte, em 1992, a Fundação Cultural do Estado da Bahia criou os Salões Regionais de Artes Visuais da Bahia, iniciativa dirigida à visibilidade da produção baiana sobretudo dos artistas do interior do Estado. Ambos eventos tem por base convocatórias públicas para seleção e premiação de artistas. A Bienal do Recôncavo evoluiu de grande mostra panorâmica regional a intercâmbios, residências e parcerias com instituições internacionais como a Academia de Brera em Milão e a Bienal de Havana. Os Salões Regionais (atualmente em sua 19a edição) tem garantido todos os anos duas ou três exposições coletivas diferentes realizadas em centros culturais das principais cidades do interior do Estado.
Esses eventos contribuíram ao desenho do circuito artístico com pelo menos três escalas (local, regional e nacional). Em 1994 o Salão Baiano de outrora, então reproposto com alcance nacional como Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas ou simplesmente Salão da Bahia, sob direção de Heitor Reis, foi realizado anualmente até 2006 constituindo uma boa estratégia de formação de acervo para o MAM-BA através dos prêmios-aquisição. Apenas nas duas últimas edições de 2007 e 2008, sob direção de Solange Farkas, o Salão da Bahia acrescentou reflexões críticas mais abrangentes, prêmios-residências para artistas baianos e passou a incorporar os premiados dos Salões Regionais da FUNCEB na mostra, entre outros desdobramentos.
Em 2009, visando ampliar o potencial de prospecção, difusão e intercâmbio do evento, o Salão da Bahia foi extinto e foi proposta a Bienal Internacional de Artes da Bahia, dirigida por um conselho curador e voltada para a produção artística da África e as América Latina. Simbolicamente, pretendia-se recuperar a Bienal da Bahia dos anos 60 enquanto instância de debate abruptamente interrompida. A antiga Bienal foi uma instância de criar uma reflexão sobre o Norte-Nordeste desde Salvador e não uma reverberação ou assimilação acrítica do que se fazia em outros lugares. Mas também era uma oportunidade de trazer uma produção nacional que poderia contribuir à formação e afirmação do circuito Norte-Nordeste.
O que se pretende agora é manter a coerência da trajetória das artes visuais tanto pelo resgate atualizado da Bienal quanto pelas demandas e conquistas dos últimos anos a partir da dinamização do circuito com projetos, mostras e eventos articulados com o cenário nacional e internacional de eventos de porte similar.
A 8ª Bienal do Mercosul “Ensaios de Geopoética” (Porto Alegre, RS) tem como tema o território e sua redefinição crítica a partir de uma perspectiva artística. Pode-se dizer que o contexto dos Pampas é seu “estudo de caso” através de sete grandes eixos curatoriais. O 17° Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC-VideoBrasil “Panoramas do Sul” (São Paulo, SP) também parte de um recorte geo-político, focalizando a produção artística visual do hemisfério sul oferecendo um compêndio de suportes, linguagens e técnicas diversas. Já o 30° Arte Pará (Belém, PA) a partir de um edital nacional, selecionou trabalhos e recortes que perpassam a paisagem, e mais especificamente a Amazônia como foco. Nessa linha, uma Bienal da Bahia pautada pela discussão do Sertão, por exemplo, como eixo de atenção seria um excelente contraponto dessas discussões. Porém, conceitos menos circunscritos a realidades geográficas tem norteado outras mostras atuais e também poderiam ter ecos ou contrapropostas desde uma Bienal da Bahia. A última 29a Bienal de São Paulo (São Paulo, SP), uma das mostras mais importantes do circuito internacional de arte contemporânea e da qual tivemos um recorte no inicio do ano no MAM-BA, teve por base as relações entre arte e política. A 6a Bienal Vento Sul “Além da Crise” (Curitiba, PN) apresenta uma seleção de artistas convidados pela aproximação ao conceito de “crise”, enquanto posição de inflexão de uma situação ou como consciência ou consequência de superação de um momento de mudança de paradigma. No caso do 32° Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP “Itinerários, Itinerâncias” (São Paulo, SP) o eixo conceitual é a experiência do deslocamento, das práticas colaborativas e da noção de circulação na produção atual brasileira.
Em síntese, pertinência temática, possibilidades conceituais, questionamentos lingüísticos e repertório não faltam para uma Bienal da Bahia. Aspectos logísticos como locais de realização, dimensionamento e critérios para montagem de uma Bienal também não faltam: temos uma extensa trajetória de mais de seis décadas de salões, bienais, mostras e exposições em diversas escalas e graus de abrangência. Mão-de-obra e artistas sobram para uma empreitada dessas! Recursos financeiros? Ora, um Estado que organiza o maior carnaval do planeta não pode se dar ao luxo de ficar de fora do circuito internacional de arte. Podemos fazer algo mais modesto para 2012 (ainda estamos a tempo!) como modo de “por o bonde nos trilhos”, para então sim planejar uma Bienal maior e colocar a Bahia no circuito internacional na carona dos holofotes da Copa de 2014. E não perder de vista a afirmação do evento no marco das Olimpíadas de 2016. Já contamos com respeitadíssimas mostras internacionais de Cinema, Música e Artes Cênicas que muito podem acrescentar nesta tarefa. Só faltam as Artes Visuais terem o devido espaço. Estamos esperando o quê?